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Um nariz para os micróbios: como a fome ajusta o cérebro

Peer-Reviewed Publication

Champalimaud Centre for the Unknown

Chocolate and cheese

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Cheese and chocolate may hold little culinary appeal for a fruit fly, yet for one deprived of nutrients, their aroma hides an important clue.

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Credit: Carla Emilie Pereira

Uma nova investigação da Fundação Champalimaud (FC) revela como a ausência de apenas um aminoácido essencial pode alterar a expressão genética e os sistemas sensoriais do cérebro, levando os animais a procurar leveduras e bactérias intestinais ricas em proteínas que os irão ajudar a restaurar o equilíbrio nutricional e a sobreviver em tempos de necessidade.

Pistas fermentadas

O queijo e o chocolate podem não agradar ao paladar de uma mosca-da-fruta, mas, para uma mosca faminta e carente de nutrientes, o seu cheiro traz uma mensagem escondida. Quando privadas de certos aminoácidos - os “tijolos” que formam as proteínas - estes pequenos animais desenvolvem um olfato surpreendentemente apurado, que os ajuda a encontrar comida, mas também bactérias específicas que vivem em alimentos fermentados.

Há muito que os cientistas sabem que os animais conseguem perceber quando lhes faltam determinados nutrientes e que ativamente procuram alimentos específicos para compensar essa carência. O que até agora permanecia pouco compreendido era o modo como o cérebro traduzia essa necessidade nutricional interna num impulso comportamental, como uma “necessidade” fisiológica se transformava num “desejo” sensorial. Foi esta a questão que motivou os investigadores do Laboratório de Comportamento e Metabolismo da FC, liderado pelo Investigador Principal Carlos Ribeiro, autor sénior do estudo.

A história de dois genes

Os animais, incluindo os humanos, não conseguem produzir todos os aminoácidos de que precisam. Os chamados aminoácidos essenciais têm de ser obtidos através da alimentação. Basta que falte apenas um e a química interna do corpo altera-se drasticamente: a síntese de proteínas falha, o metabolismo altera-se e o cérebro desencadeia um apetite específico por alimentos ricos em proteínas.

Nas moscas-da-fruta, este comportamento é fácil de observar: ao remover um único aminoácido essencial da sua dieta, elas passam a procurar levedura, a sua principal fonte de proteína. Mas a equipa de Ribeiro queria perceber o que acontecia no cérebro para provocar essa mudança.

Através de dietas sintéticas, cada uma delas sem um dos dez aminoácidos essenciais, os investigadores sequenciaram o RNA (ácido ribonucleico) das cabeças das moscas, em onze condições diferentes: dez dietas, cada uma com um dos 10 aminoácidos essenciais omitido, e uma dieta de controlo equilibrada. Isso permitiu-lhes acompanhar como a expressão de milhares de genes variava consoante o aminoácido que estava em falta.

“Embora o comportamento das moscas fosse semelhante em todas as carências de diferentes aminoácidos, mostrando um aumento na ingestão de levedura - uma fonte de proteina, cada uma apresentava uma ‘impressão digital’ única em termos de expressão génica”, explica Gili Ezra-Nevo, primeira autora do estudo. “Mas, apesar dessas diferenças, alguns genes alteravam-se sempre da mesma forma, independentemente do aminoácido em falta.”

Entre essas alterações comuns, houve um padrão que se destacou: dois genes de recetores olfativos, ambos envolvidos no cheiro, estavam consistentemente desregulados em resposta à carência de aminoácidos. Estes genes - Or92a e Ir76a - mostraram ser a chave para compreender como o sentido de olfato das moscas é ajustado para satisfazer as suas necessidades.

O papel da levedura: como o olfato molda o sabor

O primeiro recetor, Or92a, já era conhecido por responder à diacetil, uma molécula que confere às pipocas com sabor a manteiga o seu aroma característico e também contribui para o cheiro do vinho e da cerveja. A levedura produz diacetil durante a fermentação e, como contém todos os aminoácidos essenciais, faz sentido que este odor se torne especialmente apelativo para as moscas quando estas se encontram privadas de proteínas.

Quando os investigadores testaram moscas sem o gene Or92a, os insetos ainda conseguiam localizar a levedura, mas comiam menos. “Conseguiam perceber onde ela estava, mas possivelmente não lhes sabia tão bem”, explica Ezra-Nevo. “Isso acontece porque o olfato não serve apenas para encontrar comida, também contribui para o sabor e para avaliar se algo é agradável ao paladar.”

Mas a equipa foi ainda mais longe utilizando uma variante alterada de levedura que não produzia diacetil. O resultado foi o mesmo: as moscas mostraram menor propensão para se alimentar. A perda desse estímulo olfativo essencial alterou a perceção do sabor, tornando a comida menos apelativa. Tal como os humanos perdem o apetite ou o prazer em comer quando estão constipados, as moscas dependem de uma interação próxima entre o olfato e o paladar para regular a sua alimentação.

“Neurónios do chocolate” no cérebro?

O segundo recetor, Ir76a, revelou-se ainda mais misterioso. Ao fazerem uma revisão da literatura, os investigadores descobriram que alimentos fermentados, como o queijo e o chocolate, libertam um composto chamado PEA, que por sua vez ativa o Ir76a.

Testes mostraram que os neurónios olfativos das moscas respondiam fortemente ao odor do chocolate, mas não ao do queijo. Teriam os investigadores encontrado “neurónios do chocolate” no cérebro? Não propriamente. Como as moscas normalmente não se alimentam de chocolate ou queijo, a equipa investigou mais a fundo e descobriu a verdadeira ligação: ambos os alimentos são fermentados por bactérias da família Lactobacillus e Acetobacter, que produzem o mesmo composto.

“Foi aí que tudo fez sentido”, conta Sílvia Henriques, co-primeira autora do estudo. “As moscas não eram atraídas pelo chocolate em si, estavam antes a responder às bactérias que cresciam nesses alimentos. E essas bactérias são também espécies naturalmente encontradas no microbioma da mosca.”

Quando os investigadores expuseram as moscas a bactérias Lactobacillus e Acetobacter vivas, os neurónios Ir76a responderam de forma ainda mais intensa. Experiências comportamentais confirmaram a ligação: as moscas privadas de aminoácidos aumentaram ativamente o consumo de bactérias vivas, mas apenas enquanto estas estavam metabolicamente ativas. Bactérias mortas já não desencadeavam a alimentação. Por outras palavras, as moscas procuravam as bactérias pelos seus benefícios metabólicos.

E quando a equipa inativou o recetor Ir76a, as moscas perderam completamente o interesse, mesmo estando carentes de nutrientes. “Esta foi a descoberta mais surpreendente”, diz Ezra-Nevo. “Mostrou que o sentido do olfato das moscas está literalmente ajustado para detetar bactérias, e que essa afinação depende do seu estado nutricional interno. A carência de aminoácidos não alterou apenas a atividade neuronal, mas também e logo à partida, quais os recetores que estavam a ser feitos.”

Aliados microbianos nas moscas… e no ser humano

Porque é que uma mosca procuraria bactérias quando os aminoácidos escasseiam? Estudos anteriores mostraram que alimentar-se de certas bactérias melhora a produção de ovos em moscas com privação de aminoácidos. Outras investigações revelaram que o microbioma intestinal pode aumentar a absorção de aminoácidos em condições de escassez de nutrientes, produzindo enzimas que decompõem as proteínas de forma mais eficiente.

“Ao seguir o seu olfato até às bactérias, parece que as moscas evoluíram para usar os micróbios como aliados, procurando parceiros que aumentam as suas hipóteses de sobrevivência quando enfrentam situações de carência de aminoácidos”, explica Henriques.

Os paralelismos com os humanos são fascinantes. Muitas dietas tradicionais incluem alimentos fermentados, do kimchi ao iogurte ou ao kefir, conhecidos há muito pelas suas propriedades conservantes, no entanto, uma componente menos reconhecida do seu valor é que contêm bactérias benéficas que ajudam na digestão e na absorção de nutrientes.

Os resultados sugerem que o nosso apetite por alimentos fermentados pode derivar, em parte, de uma lógica biológica ancestral. Quando os nutrientes são escassos, o corpo parece ajustar os seus sistemas sensoriais para encontrar o que precisa, e por vezes isso significa procurar microrganismos em vez de macronutrientes.

Sentidos em mudança

Este estudo toca numa questão mais ampla da biologia: como é que os estados fisiológicos internos moldam a perceção e o comportamento. A ideia de que a fome pode alterar o processamento sensorial e a atividade neuronal não é nova, mas esta investigação vai mais além mostrando que, em diversas situações de privação nutricional, certos recetores sensoriais são reprogramados a nível molecular para melhorar a aptidão.

Embora muitas vezes pensemos nos sentidos como algo fixo, eles são, na verdade, extraordinariamente dinâmicos. O estudo do Laboratório de Ribeiro mostra que, quando as moscas são privadas de aminoácidos essenciais, sofrem alterações genéticas que as ajudam a detetar alimentos, ou microrganismos, capazes de colmatar esse défice e ajudá-las a adaptar-se aos desafios nutricionais. É um excelente exemplo de quão profundamente interligados estão o metabolismo, o cérebro e o comportamento.


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